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sábado, maio 29, 2004

Primeira Farpa 

Apesar de ainda não ter acabado de ler “O Crime do Padre Amaro” (esta por dias), resolvi dar uma olhadela, pela “Campanha Alegre” de « As Farpas». O primeiro artigo dá as boas vindas ao Leitor e descreve um pouco do Portugal de 1871. Vale a pena ler.

Junho de 1871

Leitor de bom-senso, abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor, celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito- se tens bom-senso! E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres e justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir, através da ilusão das aparência, algumas realidades do nosso tempo.

Aproxima-te um pouco de nós, e vê.
O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferente de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce...
O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O estado é considerado na sua acção fiscal com um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casa explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático O professor torna-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinhas e ervas, trabalhando só para o imposto por meio de um agricultura decadente, leva uma vida de miséria entrecortada por penhoras. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Apenas a devoção perturba o silêncio da opinião, com padres-nossos maquinais.
Não é uma existência é uma expiação.
E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: «o País está perdido!» Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de Norte a Sul, no Estado, na economia, na moral, o País está desorganizado – e pede-se conhaque!
Assim todas a consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!
Fim.


Encontrei algumas semelhanças com o Portugal de hoje, gostei especialmente de “A ruína económica cresce, cresce, cresce...”. É de notar que apesar de ter sido escrito antes da Monarquia ter passado para República, desta para Ditadura e regressar a República, as mentalidades Portuguesas mudaram muito pouco. Continuamos reconhecidamente perdidos, desorganizados, inertes, e na podridão.

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