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segunda-feira, agosto 09, 2004

"O primo Basílio" 

Estou a acabar de ler, "O primo Basílio" do Eça de Queirós. Por sorte e graças ao Google, encontrei uma carta escrita pelo autor com destino a Teófilo Braga, em que entre outros assuntos, Eça descreve qual foi a sua ideia ao escrever o romace. Acho que vale a pena ler, a carta e o romance.

"O PRIMO BASÍLIO"
(CARTA A TEÓFILO BRAGA)

Newcastle, 12 de março de 1878.
Meu caro Teófllo Braga.
E de você que tenho recebido, depois das minhas duas tentativas de arte, as cartas mais animadoras e mais recompensadoras. E você, como o nosso belo e grande Ramalho, que mais me tem empurrado pra diante. Eu nunca respondi à sua excelente carta sobre o Padre Amaro; contava então ir a Lisboa, e lá conversar largamente consigo; o homem propõe, a ocasião dispõe - e as poucas semanas, que aí estive passaram, sem nos encontrarmos. Talvez você imaginasse que a sua carta de então me tinha passado sobre o espírito como água sobre guta-percha. Está bem enganado: embebi-me dela. Ela deu-me valor e arranque para me atirar ao Primo Basílio - com a consolação de que vale a pena escrever um livro quando se tem um leitor como você.
A sua última foi para mim um grande alívio. Eu estava-lhe com receio: como todos os artistas, creia, eu trabalho para três ou quatro pessoas, tendo sempre presente a sua crítica pessoal. E muitas vezes, depois de ver a Primo Basílio impresso, pensei: - "o Teófilo não vai gostar!" Com o seu nobre e belo fanatismo da Revolução, não admitindo que se desvie do seu serviço nem uma parcela do movimento intelectual - era bem possível que você vendo a Primo Basílio separar-se, pelo assunto e pelo processo, da arte de combate a que pertencia a Padre Amaro, a desaprovasse. Por isso a sua aprovação foi para mim uma agradável surpresa, e todavia a sua aprovação é mais ao processo que ao assunto, e você vendo-me tomar a família como assunto, pensa que eu não devia atacar esta instituição eterna, e devia voltar o meu instrumento de experimentação social contra as produtos transitórios, que se perpetuam além do momento que os justificou, e que de forças sociais passaram a ser empecilhos públicos. Perfeitamente: mas eu não ataco a família - ataco a família lisboeta - a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochata. No Primo Basílio que apresenta, sobretudo, um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa; - a senhora sentimental, mal-educada, nem espiritual (porque cristianismo já a não tem; sanção moral da justiça, não sabe a que isso é), arrasada de romance, lírica, sobreexcitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc., etc. - enfim a burguesinha da Baixa; por outro lado o amante - um maroto, sem paixão nem a justificação da sua tirania, que a que pretende é a vaidadezinha de uma aventura, e a amor grátis; do outro lado a criada, em revolta secreta contra a sua condição, ávida de desforra; por outro lado a sociedade que cerca estes personagens - a formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de temperamento irritado (D. Felicidade), a literaturinha acéfala (Ernestinho), o descontentamento azedo, e o tédio de profissão (Julião) e às vezes quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião). Um grupo social, em Lisboa, compõe-se, com pequenas modificações, destes elementos dominantes. Eu conheço vinte grupos assim formados. Uma sociedade sobre estas falsas bases, não está na verdade: atacá-las é um dever. E neste ponto o Primo Basílio não está inteiramente fora da arte revolucionária, creio. Amaro é um empecilho, mas os Acácios, os Emestos, os Saavedras, os Basílios são formidáveis empecilhos; são uma bem bonita causa de anarquia na meia da transformação moderna; merecem partilhar com a Padre Amaro da bengalada da homem de bem.
A minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa, tal qual a fez a Constitucionalismo desde 1830 e mostrar-lhe como num espelho, que triste país eles formam - eles e elas. É o meu fim nas Cenas da vida portuguesa. É necessário acutilar o mundo oficial, a mundo sentimental, o mundo literária, o mundo agrícola, o mundo supersticioso - e com todo o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações, que lhe dá uma saciedade podre. Não lhe parece você que um tal trabalho é justo?
Enquanto ao processo - estimo que você o aprove. Eu acho no Primo Basílio uma superabundância de detalhes, que obtive, e abafo um pouca a ação; o meu processo precisa simplificar-se, condensar-se - e estuda isso; o essencial é dar a nota justa; um traço justo e sóbrio, cria mais que a acumulação de tons e de valores - como se diz em pintura. Mas isto é querer muito. Pobre de mim - nunca poderei dar a sublime nota da realidade eterna, como a divina Balzac - au a nata justa da realidade transitória cama a grande Flaubert! Estes deuses e estes semideuses da arte estão nas alturas - e eu, desgraçadinho, rabeio nas ervas intimas. E todavia se já houve sociedade que reclamasse um artista vingador é esta! E sobretudo, vista de longe no seu conjunto, e contemplada de um meio farte como este aqui (sejam quais forem os seus grandes males, forte decerto) que contrista, achá-la tão mesquinha, tão estúpida, tão convencionalmente pateta, tão grotesca e tão pulha!
Alegra-me que você queira escrever alguma coisa sobre o Basílio; a sua opinião, publicada, daria ao meu pobre romance uma autoridade imprevista. Dar-lhe-ia um direito de existência; e de todos os defeitos, faltas, ou erros que você notar - tomarei cautelosamente nota. Eu tenho a paixão de ser lecionado; e basta darem-me a entender o bom caminho para eu me atirar para ele. Mas a crítica, ou a que em Portugal se chama a crítica, conserva sobre mim um silêncio desdenhoso.
Como você viu bem o caráter do Basílio! Está claro que a fortuna nunca o poderia ter moralizado; a sua fortuna, como você diz, foi um bambúrrio; era pulha antes, um pulha pobre - depois tornou-se apenas um pulha rico. Pessoas amigas escrevem-me dizendo, que parece incrível que um homem que trabalhou na Brasil com valor; seja no fundo um canalha! Estranha opinião! A Bahia considerada - como a Fonte Santa da Purificação...
Basta de cavaqueira. Se você publica algum livro por esta ocasião - mande-mo; e se tiver par aí alguns volumes da sua História da literatura a de mais, e que lhe não façam falta, dê-os ao Ramalho que ele nos manda. Eu, os que tinha, perdi-os estupidamente, com as obras de Shakespeare, de V. Hugo, num caixote, caminho da Havre, e outras abras mais. Escrevi para o Porto a um amigo a mandá-los pedir; e nunca me respondeu sequer: e eu preciso deles para um pequeno trabalho. Se não se esquecer - lembre-se. Um abraço do

Seu grande admirador, e dedicado amigo velho,

Eça de Queirós.




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